Por: Danilo Leal, Marcela Adari e Bruna Laís dos Santos
Desde o final de 2024, não foram editadas novas normas em decorrência do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49 (ADC 49), no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais trechos da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) que previam a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular.
Este artigo apresenta um resumo dos principais pontos do julgamento, com comentários sobre questões relevantes que afetam contribuintes que utilizam benefícios fiscais do ICMS. O objetivo é esclarecer as implicações estratégicas do Convênio ICMS nº 109/2024 e outros desdobramentos decorrentes da decisão do STF.
1. Percurso legislativo e jurisprudencial até a ADC 49
A discussão sobre a incidência do ICMS nas transferências entre filiais não é recente. Desde a década de 1990, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio da Súmula 166, já firmava o entendimento de que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”. O STF reforçou essa interpretação ao julgar a repercussão geral no ARE nº 1.225.885 (Tema nº 1.099).
Apesar dessa jurisprudência consolidada, a Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) ainda estabelecia, de forma genérica, a incidência do ICMS nessas operações (art. 12, I) e os estados mantinham, assim, a cobrança do imposto. Diante disso, os contribuintes tinham duas opções: (i) recorrer ao judiciário para contestar a exigência ou (ii) estruturar suas operações dentro do regime de débito e crédito com respaldo nas normas estaduais.
O tema voltou a ser debatido no STF quando o estado do Rio Grande do Norte ajuizou a ADC 49. Em 2021, o plenário, por unanimidade, declarou inconstitucionais dispositivos essenciais à tributação do ICMS nas transferências entre filiais, incluindo: art. 11, §3º, II: que tratava da autonomia dos estabelecimentos; art. 12, I: trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, que previa a incidência do imposto nessas operações; e art. 13, §4º: que disciplinava a base de cálculo para essas transferências.
Com essa decisão, o STF retirou do ordenamento jurídico normas fundamentais à cobrança do ICMS nessas operações. Portanto, a ADC 49 representou um divisor de águas, pois invalidou regras que sustentavam a sistemática de não cumulatividade do tributo e a organização operacional de empresas que usufruíam da aplicação de benefícios fiscais do ICMS.
Diante das controvérsias geradas pelo julgamento, foram opostos os primeiros embargos de declaração, analisados pelo STF em abril de 2023, os quais decidiram pela:
Manutenção do direito ao crédito de ICMS: A transferência entre estabelecimentos é apenas movimentação física sem incidência do ICMS. Assim, não se aplica o estorno de créditos de ICMS estabelecido pelo artigo 155, §2º, II, da Constituição Federal, garantindo a manutenção dos créditos, como ocorre na saída em comodato (RE 1.141.756).
Autonomia dos estabelecimentos: A declaração de inconstitucionalidade se limitou ao contexto das transferências, sem suprimir o conceito de autonomia para outros fins.
Modulação dos efeitos: A decisão tem eficácia a partir de 2024, com exceção dos processos administrativos e judiciais pendentes até 29/04/2021.
Novos embargos foram apresentados, mas foram indeferidos sem julgamento de mérito, deixando algumas questões pendentes de serem definidas, quais sejam:
Alcance da modulação de efeitos: Embora a inconstitucionalidade só produza efeitos a partir de 2024, a decisão reafirma uma jurisprudência consolidada há mais de três décadas, o que levantou questionamentos sobre a necessidade da limitação temporal imposta na modulação.
Faculdade de manutenção ou transferência do crédito: O STF afastou a obrigação de estorno pelo estabelecimento remetente, mas não esclareceu se o contribuinte pode optar por manter os créditos na origem ou transferi-los ao destino.
Aplicação dos benefícios fiscais: Com o afastamento do ICMS nas transferências, surgiram dúvidas sobre a continuidade dos incentivos fiscais.
Obrigatoriedade do estorno dos créditos: A manutenção de benefícios fiscais de redução da base de cálculo que implica em estorno proporcional dos créditos de operações anteriores, mostrou necessária uma análise integrada com os impactos do julgamento da ADC 49.
A par dessas controvérsias, houve a publicação de normas que delinearam o novo contexto legislativo após o julgamento da inconstitucionalidade.
Dentre as normas de atual relevância, não podemos ignorar as mais recentes relativas à revogação do veto do §5º do art. 12 da Lei Kandir e o consequente Convênio ICMS 109/2024 que trouxe a regulamentação das transferências entre filiais, permitindo ao contribuinte simplesmente transferir os créditos ou tratar as operações como se tributadas fossem, – essa situação precisa ser avaliada especialmente considerando as controvérsias resultantes do julgamento, conforme explorado a seguir.
2. Comentários do /asbz sobre as controvérsias resultantes do julgamento da ADC 49
Embora o julgamento da ADC 49 tenha sido concluído, alguns pontos continuam gerando discussões relevantes. Vejamos os principais temas:
2.1. Modulação dos efeitos da inconstitucionalidade do ICMS nas transferências entre filiais
A modulação dos efeitos determinada no julgamento dos embargos da ADC 49 mostrou-se controversa, pois a inconstitucionalidade da incidência do ICMS nessas operações só passou a valer a partir de 2024, com exceção dos processos pendentes até 29/04/2021. No entanto, a decisão apenas reafirmou uma jurisprudência consolidada desde a década de 1990, expressa na Súmula nº 166 do STJ.
Diante desse histórico, alguns tribunais estaduais, como o de São Paulo, passaram a desconsiderar a limitação temporal imposta pelo STF, gerando divergências sobre o alcance da decisão.
A controvérsia foi novamente levada ao STF no Tema nº 1.367, cujo julgamento foi concluído em fevereiro de 2025 (veja nosso informativo aqui), colocando um fim a um dos principais pontos controvertidos da ADC nº 49, qual seja, seu corte temporal:
“A não incidência do ICMS em transferências interestaduais entre estabelecimentos do mesmo contribuinte só produzirá efeitos a partir de 2024.
O ICMS deve ser recolhido sobre operações realizadas até 31/12/2023, exceto para contribuintes com ação administrativa ou judicial pendente até 29/04/2021.
O marco inicial para afastamento da cobrança deve ser rigorosamente observado pelas instâncias ordinárias, sob pena de violação da autoridade do STF.”
2.2. Faculdade de manutenção ou transferência do crédito de ICMS nas transferências
A possibilidade de os contribuintes manterem os créditos de ICMS na origem é um dos temas centrais da ADC 49. A questão principal é se o STF reconheceu a não cumulatividade como um direito pleno, cabendo exclusivamente ao contribuinte decidir se o mantém na filial remetente ou se transfere à filial destinatária.
Sobre esse tema, vale relembrar que, no voto vencedor dos embargos de declaração, o Ministro Relator Edson Fachin avaliou a questão dos créditos de ICMS sob uma perspectiva estrita da necessidade ou não do estorno dos créditos de ICMS pelo estabelecimento de origem e concluiu que a transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não caracteriza hipótese de isenção ou não incidência (art. 155, §2º, II, ‘b’ da Constituição). Assim, afastou a necessidade de estorno pela filial remetente.
Acompanhando o voto do Relator, o Ministro Luís Roberto Barroso confirmou referido entendimento, tendo complementado que:
“Essa circunstância, em princípio, permite que um estabelecimento acumule créditos, enquanto outro estabelecimento concentre débitos. Para o respeito à não cumulatividade do ICMS, portanto, é imperioso que se faculte aos sujeitos passivos a transferência de créditos entre os estabelecimentos de mesmo titular, de maneira a manter a não cumulatividade ao longo da cadeia econômica do bem.”
Sob esta perspectiva, o Ministro Barroso reconheceu a existência de um vácuo normativo acerca da questão das transferências dos créditos de ICMS entre as filiais, existente à época, o que justificaria que a modulação de efeitos assegurasse que, a partir de 2024, sem que os estados disciplinassem a transferência dos créditos, os sujeitos passivos teriam o direito de transferi-los. Contudo, antes da virada do exercício, foi promulgada a Lei Complementar nº 204 e o Convênio ICMS nº 178, ambos de 2023, que regulamentaram a matéria e determinaram a obrigatoriedade da transferência dos créditos ao estabelecimento de destino, sendo assegurados ao estabelecimento de origem apenas os créditos acumulados que normalmente são apurados em razão da diferença de alíquotas.
Assim, com base na redação atual do artigo 12 da Lei Complementar nº 87/96, efetuar a transferência de mercadorias sem a tributação da operação ou a transferência dos créditos seria uma prática com afronta à lei que foi aprovada pelo Congresso, no exercício de sua competência, a qual produz seus regulares efeitos, razão pela qual a adoção do procedimento de manutenção facultativa dos créditos na origem deve ser precedida de uma medida judicial, inclusive para evitar problemas de ordem prática com auditoria, necessidade de provisão, impacto futuro no resultado, etc.
No entanto, fato é que esse aspecto não foi exaustivamente abordado pelo STF, razão pela qual há precedentes em ambos os sentidos. Em São Paulo, por exemplo, há uma série de decisões, favoráveis e desfavoráveis, que deve ser considerada pelo contribuinte para tomada de decisão:
Favoráveis à tese: Mandado de Segurança nº 1004476-95.2024.8.26.0625, de 24.10.2024, Juiz Graciella Lorenzo Salzman, Foro de Taubaté. Mandado de Segurança nº 1012747-63.2024.8.26.0053, de 06.03.2024, Juiz Fábio Alves da Motta, da 9ª Vara da Fazenda Pública
Desfavoráveis à tese: Mandado de Segurança nº 1029559-83.2024.8.26.0053, de 18.06.2024, Juiz Fausto Dalmaschio Ferreira, da 11ª Vara da Fazenda Pública.
Agravo de Instrumento nº 2189760-94.2024.8.26.0000, de 11.07.2024. Relatora Teresa Ramos Marques, da 10ª Câmara de Direito Público
As razões apresentadas nos votos desfavoráveis não podem ser ignoradas, especialmente à luz da interpretação do voto do Ministro Barroso no julgamento dos embargos na ADC nº 49. Contudo, é importante destacar que o STF ainda não se pronunciou expressamente sobre essa controvérsia, fato que evidencia a existência de espaço para debate.
2.3. Manutenção dos benefícios fiscais de ICMS
Diante do entendimento da ADC nº 49 de que a transferência entre filiais não está sujeita à incidência de ICMS, outro aspecto relevante foi a manutenção dos benefícios fiscais nessas operações.
Inicialmente, a Lei Complementar nº 209/2024 estabeleceu apenas a obrigatoriedade da transferência dos créditos de ICMS. Posteriormente, foi incluída a possibilidade de tratar essas operações como se tributadas fossem.
Para garantir benefícios fiscais normalmente atrelados a uma saída tributada, como créditos outorgados e presumidos, o Convênio ICMS nº 178/2024 estabeleceu que a mera transferência de créditos, destacada na nota fiscal, não resultaria no cancelamento dos benefícios fiscais concedidos pelo estado de origem.
Com a inclusão do §5º no art. 12 da Lei Kandir e a publicação do Convênio ICMS nº 109/2024, que revogou o Convênio nº 178/2024, a garantia dos benefícios fiscais passou a depender da opção pela tributação efetiva das transferências.
Essa mudança gera controvérsias, pois caso os contribuintes optem apenas pela transferência de créditos, sem tributar as operações, os benefícios podem não estar assegurados. Para contribuintes que usufruem de isenção ou redução de base de cálculo, essa prática mantém a neutralidade tributária. No entanto, para aqueles que dependem de créditos outorgados ou presumidos, a opção pela tributação tornou-se essencial, pois esses benefícios, convalidados pela Lei Complementar nº 160/2017, geralmente exigem uma saída tributada.
A complexidade aumenta quando uma empresa usufrui de diferentes benefícios fiscais (ex.: redução de base de cálculo e crédito outorgado). O Convênio ICMS nº 109/2024 exige que a escolha pela tributação das transferências seja anual, irretratável e uniforme para todos os estabelecimentos do contribuinte.
Isso significa que, se uma empresa que usufrui de crédito outorgado em Minas Gerais optar pela tributação, sua filial que goza de redução de base de cálculo em operações interestaduais também será obrigada a tributar essas transferências. Isso pode gerar ineficiências tributárias desnecessárias nas etapas intermediárias.
Atualmente, não há previsão legal para uma opção parcial entre os regimes tributários, tornando indispensável a adoção de medida judicial para viabilizar estratégias específicas. Assim, os contribuintes precisam avaliar cuidadosamente os impactos dessa regra, principalmente em razão da opção já exercida no final de 2024, ainda sem solução definitiva na jurisprudência.
2.4. Estorno de créditos e benefícios fiscais nas transferências entre filiais
A Constituição Federal exige o estorno proporcional do crédito de ICMS em casos de benefícios fiscais de isenção ou não incidência, salvo disposição em contrário. O STF, nos RE nº 174.478/SP e RE nº 635.688/RS, equiparou a redução da base de cálculo à isenção parcial, validando o estorno proporcional dos créditos nessas situações.
No contexto do julgamento dos embargos da ADC 49, o STF afastou a aplicação desse dispositivo às transferências entre filiais, por entender que tais operações não configuram hipótese de isenção ou não incidência, mas sim uma mera movimentação física.
Embora esse entendimento possa sugerir que não há necessidade de estorno dos créditos mesmo em transferências de produtos com redução da base de cálculo (ex.: produtos agrícolas), o STF analisou a questão de forma ampla, considerando a não cumulatividade do ICMS em toda a cadeia.
Assim, após a ADC 49, a regra que tem prevalecido é a manutenção da sistemática vigente até 31/12/2023, com normas garantindo o crédito na origem. A Lei Complementar nº 204/2023 preservou esse racional, permitindo a apropriação apenas da diferença positiva entre o crédito transferido e aquele da aquisição (crédito acumulado). Além disso, os Convênios ICMS nº 178/2023 e nº 109/2024 mantiveram expressamente os benefícios fiscais. Contudo, a interpretação de que a transferência entre filiais deve ser considerada “transparente” para efeitos tributários levanta o questionamento sobre a obrigatoriedade do estorno de créditos. Se uma filial remetente não transferir créditos à filial de destino, que posteriormente venderá o produto com isenção total, haveria fundamento para exigir o estorno integral na origem.
Esse ponto não foi exaustivamente tratado pelo STF, tornando recomendável que contribuintes que desejam manter créditos na origem sem estorno busquem medidas judiciais.
Vale mencionar que há precedente que sustentam que o estorno só se aplica quando há isenção ou não incidência na saída subsequente, sendo que a ADC 49 afastou a incidência do ICMS na transferência entre filiais, sem classificá-la nessas categorias (ex., TJRS – Apelação nº 5022903-49.2023.8.21.0010/RS, DJ 17/06/2024).
Trata-se de questão bastante relevante, principalmente para os contribuintes que usufruem de benefícios de redução da base de cálculo com necessidade de estorno proporcional, a exemplo daqueles decorrentes do Convênio ICMS nº 100/1997 (insumos agropecuários).
3. Comentários finais com insights ao setor agropecuário
O julgamento da ADC 49 não esgotou todas as discussões afetas ao tema da não incidência do ICMS nas transferências entre filiais. Ainda há pontos que precisam ser debatidos para garantir maior segurança jurídica aos contribuintes. Algumas exigências impostas pela legislação resultam em ineficiências tributárias e não parecem totalmente alinhadas à decisão do STF que, até o momento, não se manifestou expressamente sobre essas inconsistências. Diante desse cenário, buscar orientação jurídica é essencial, especialmente em um momento de transição marcado pelas mudanças da Reforma Tributária sobre o Consumo.
Um ponto relevante é que com a Lei Complementar nº 214/2024, a qual regulamenta a instituição do IBS e da CBS, as transferências entre filiais também não estarão sujeitas à incidência tributária, sendo obrigatória a emissão de documento fiscal para essas operações.
Além disso, setores impactados pelo julgamento da ADC 49, como o agronegócio, precisam avaliar os efeitos da nova sistemática. Os insumos agropecuários, por exemplo, terão um tratamento próprio de diferimento vinculado a uma redução de alíquota de 60%. Essas mudanças exigem análises detalhadas para que as empresas compreendam os impactos sobre a cadeia de fornecimento desses produtos.
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